Interno bebendo água do esgoto no Hospital Colônia em Barbacena (MG)

04 de Maio de 2025

Interno bebendo água do esgoto no Hospital Colônia em Barbacena (MG)

Na Colônia, não havia água encanada ou seneamento básico.

Em 1903, Barbacena, MG, ganhou a alcunha de “Cidade dos Loucos”, graças à inauguração de sete instituições psiquiátricas no município. Na época, estâncias de clima ameno, como Barbacena, eram vistas como propícias para o tratamento de doenças mentais. Uma dessas iniciativas era o Hospital Colônia. Mas, com o tempo, o que era planejado como uma instituição médica tornou-se um matadouro. A região mineira formada por Barbacena, Juiz de Fora e Belo Horizonte agregou até a década de 80 dezenove dos vinte e cinco hospitais psiquiátricos de Minas, 80% dos leitos da saúde mental do Estado, recebendo o nome de corredor da loucura.
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Os pavilhões do Hospital Colônia.

O Hospital Colônia revelou-se maior em muitos números: em tamanho – 8 milhões de metros quadrados, em tempo de existência – de 1903 a 1980, e maior em um dado trágico: 60.000 pessoas morreram ali internadas. O livro que descreve esta tragédia (Holocausto Brasiliero, Daniela Arbex) é muito bem documentado, inclusive com acervo fotográfico de reportagens jornalísticas e foi organizado em torno de histórias pessoais e entrevistas com trabalhadores do local, médicos e pacientes sobreviventes. No total, restaram 200 sobreviventes e a maioria deles estão incluídos no livro. O livro nos deixa, entretanto, estupefatos ao nos relembar do que somos capazes, já que os relatos trazem detalhes do cotidiano do hospital. Tudo ali foi feito sob a administração de vários governos, com a anuência de todas as instâncias médicas e administrativas (foram 10 diretores ao todo, ao longo da existência do hospital), com a presença e participação dos funcionários, com o testemunho da cidade de Barbacena. Todo o simples cenário necessário para a presença da banalidade do mal, que está sempre entre nós: “O fato é que a história do Colônia é a nossa historia. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil” (Arbex, 2013, p. 255).
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Não havia distinção de são e doentes.

Dentro dohospital, apesar de ninguém ter apertado o gatilho, todos carregam mortes nas costas. O psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta antimanicomial, visitou o Colônia em 1979 e afirmou: “Estive hoje num campo deconcentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta” (Arbex, 2013, p. 207). Os pacientes eram separados por sexo, idade e características físicas. Como o Colônia não tratava apenas pessoas da cidade, muitos vinham de fora, desembarcando de trem. Em 1933, o escritos Guimarães Rosa, que trabalhou brevemente como médico no Colônia, chamou aquilo de 'trem de doido'. Anos depois, o cenário rendeu comparações inevitáveis com os campos de concentração nazistas, já que eles também eram abestecidos com trens. Os paralelos com os campos nazistas não paravam aí. Estima-se que 70 dos internados não apresentavam registro de doença mental. Eram gays, alcoólatras, militantes políticos, mães solteiras, mendigos, negros, pobres, índios, pessoas sem documento etc. De hospital psiquiátrico, a instituição virou depósito de gente indejada da época. Uma mulher chegou a ser internada porque tinha tristeza!!
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O tratamento consistia em comprimidos rosas ou azuis em função dos sintomas, lobotomias ou eletrochoques sem anestesia. Hoje alguns untensílios estão expostos no Museu da Loucura.

Torturas físicas e psicológicas eram rotina no Colônia. Entre as mais comuns havia a ducha escocesa (banho propiciado por máquinas de alta pressão) e tratamentos de choque, ambos aplicados a quem não se comportasse bem. Estupros também foram relatados durante as décadas de funcionamento do hospital. Em geral hospitais psiquiátricos usavam métodos como tratamento de choque nos pacientes - não era uma excluisividade do Colônia. A situação começou a mudar com uma revolução no sistema de saúde mental proposta pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, na década de 1960, e com o Movimento Antimanicomial, criado no Brasil em 1987, que queria que as instituições tivessem um perfil de tratamento e de reabilitação, não de prisão. A terapia de choque (eletroconvulsoterapia) surgiu na década de 1930 como alternativa experimental para tratar casos de psicopatologias graves.
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Quarto no Hospital Colônia em 1959.

O hospital poderia receber até 200 pessoas, mas chegou a ter 5 mil. Para comportar tanta gente e abrir espaço, o Colônia trocou camas por capim. A desumanização se espalhava pelos 16 pavilhões, onde faltavam água encanada e alimentos. Muitos internos bebiam e se banhavam no esgoto a céu aberto. Com uma sucessão de maus-tratos, frio e fome, muitos não resistiam. Percebendo que o cemitério municipal já não comportava o número cada vez mais alto de mortos no Colônia, funcionários do hospital começaram a traficar corpos para faculdades de medicina, que os usavam em aulas de anatomia. Se a procura era baixa, os mortos eram dissolvidos em ácido. Condições precárias, torturas, superlotação, abonadono e crueldade resultaram em uma catástofre anunciada.
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Era comum ver internos caídos no chão, em posições atrofiadas, sem que os funcionários fizessem nada para ajudar ou descobrir o motivo.

Mulheres grávidas que eventualmente dessem à luz no hospital tinham seus bebês recolhidos. Ao longo dos anos, várias crianças foram encaminhadas à adoção e nunca mais viram suas mães biológicas. "É compreensível que, depois disso, muitas mulheres tivessem, de fato, enlouquecido", escreve Daniela Arbex. Uma dessas mulheres era Sueli Rezende. Dez dias após o parto da filha, ela teve a bebê arrancada de seus braços. Os prontuários do hospital mostram que Sueli lembrou de cada um dos 22 aniversários da garata - ela celebrava rezando. "Uma mãe nunca se esquece da filha, mesmo quando não está mais com ela", dizia Sueli. A mulher ainda teve outra menina no hospital, também criada por outra família adotiva. A interna morreu sem jamais voltar a vê-las.
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Coberto por moscas, o garoto deu impressão de estar morto ao fotográfo Napoleão Xavier

Outras crianças, cerca de 30, acabaram transferidas para o Colônia em 1976, - após o fechamento de um hospital infantil. O tratamento dado a elas era igual ao dos adultos, com eletrochoques, camisa de força, encarceramento. E a morte. Numa manhã, uma funcionária recém-contratada pelo Colônia entrou na ala infantil e encontrou o corpo de um garotinho no chão, enrijecido, ao lado da cama. A mulher se desesperou. "Ele está morto, gente", gritou. "Você vai ter que se acostumar. Acontece toda hora", respondeu uma colega. O descaso, a loucura e a morte acompanharam o Hospital Colônia de Barbacena por gerações. A história de horror só veio a público em 1961, após uma reportagem publicada pela revista O Cruzeiro. O Brasil se comoveu, os políticos da época prometeram dar fim à situação, mas quando o calor da notícia diminuiu tudo permaneceu como era. Quase 20 anos depois, o Colônia foi objeto de novas reportagens. A repercussão foi maior e ensejou a reforma psiquiátrica no Brasil - o começo do fim dos manicômios.
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Pacientes do Hospital Colônia.

Alguns pacientes foram transferidos para residências terapêuticas. Os sobreviventes tiveram que aprender coisas básicas - do uso de banheiro ao modo de usar talheres. Tentaram reconstruir suas vidas com o pouco de dignidade que receberam. É o caso de Sônia Maria da Costa. Ela chegou ao Colônia em 1961, aos 11 anos, rejeitada pela família que a criava. Ficou internada em hospícios por quatro décadas, até 2003. Acolhida em um programa federal, teve a identidade recuperada. Vaidosa, gosta de comprar brincos, batons, vestidos e sapatos. Um luxo para quem passou a vida inteira nua e descalça.
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Algemas usadas para conter os internos, a maioria dos quais não sofriam de doenças mentais.

O café da manhã era servido às 8h, mas quem dormia nos pavilhões precisava acordar às 5h. Em seguida, uma multidão de sujeitos esquálidos preenchiam o pátio. Fizesse chuva ou sol, frio ou calor, permaneciam ao relento até a hora de dormir - ociosos, sem fazer absolutamente nada além de ruminar e degenerar, física e mentalmente. Os mais fortes eram convocados para trabalhar no campo, plantando e colhendo milho, batata-doce, feijão e outros alimentos. A mão de obra dos internos também era usada na limpeza do hospital, no conserto de vias públicas, na preparação de doces. Nenhum deles recebia qualquer tipo de remuneração. Todos os dias, a direção do Colônia disponibilizava 120 quilos de arroz e 60 quilos de feijão. Era tão pouco para alimentar 5 mil pessoas que o caldo do feijão tinha que ser encorpado com farinha de mandioca. Quando havia carne, uma raridade, os cortes eram feitos no chão. A comida tinha aspecto repugnante, além de ser rala e insossa. Na época de colheita de milho, o cardápio era levemente incrementado. O leite chegava em tambores, apenas uma vez por semana. Os internos podiam beber à vontade. Não por gentileza, mas porque os recipientes deveriam voltar vazios. Como não havia utensílios nem local para armazenagem no hospital, os funcionários permitiam que as pessoas ingerissem a bebida até vomitar. O que sobrava ia para o ralo. Facas e garfos eram proibidos, e todo alimento devia ser consumido em cumbucas de alumínio, individuais. Se alguém perdesse a sua cumbuca, não recebia outra - a solução era comer na mão.
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Museu da Loucura, Barbacena-MG.

Apesar de tudo isso, foi apenas na década de 1980 que a história do Hospital Colônia teve fim, encerrando de vez as atividades. Em memória daqueles que foram mortos no Hospital Colônia de Barbacena, no mesmo local, foi aberto o Museu da Loucura em 1996. As barbáries cometidas por detrás das paredes do local foram crimes institucionalizados, tendo o Estado como o responsável. Contudo, nunca houve uma reparação formal, nem mesmo com os que sobreviveram, apenas um fechar de olhos permanente, um desviar de atenção do retrovisor de nossa história, deliberadamente ignorando o que Miguel de Cervantes escreveu em seu Don Quixote de La Mancha: “A história é émula do tempo, repositório dos fatos, testemunha do passado, exemplo do presente, advertência do futuro”.


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